Entrevista

‘A comida deve fazer bem ao corpo, à alma e ao ambiente’, alerta nutricionista

Irany Arteche fala sobre as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) e defende que sejam mais difundidas no Brasil As Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) deveriam ser mais difundidas no Brasil”, afirma Irany Arteche, nutricionista e mestre em Fitotecnia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma das pioneiras na defesa dos alimentos agroecológicos …

Irany Arteche fala sobre as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) e defende que sejam mais difundidas no Brasil

Irany Arteche criou a expressão PANC para as Plantas Alimentícias Não Convencionais — Foto: Divulgação

As Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) deveriam ser mais difundidas no Brasil”, afirma Irany Arteche, nutricionista e mestre em Fitotecnia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma das pioneiras na defesa dos alimentos agroecológicos no país e de sua introdução na merenda escolar. “Queremos que se tornem convencionais, que estejam nos mercados, nas feiras, pois são plantas muito resistentes, nutritivas, saborosas, de baixo custo, espontâneas e agroecológicas”, diz.

Para que a comida do dia a dia seja de baixo impacto financeiro e ambiental e de alto valor nutricional é necessário um pensamento não convencional e uma nova maneira de olhar os alimentos. “Minha criatividade vem de uma urgência que tenho de cuidar do planeta”, defende a nutricionista, criadora do acrônimo PANC.

Irany Arteche: Eu acho que eu sempre tive uma predisposição para todos os assuntos não convencionais que envolvessem alimentação. Fui uma criança que levava para a escola pão com doce de chuchu, que a minha avó fazia. Isso já me tornou predisposta a não achar tão diferente comer, por exemplo, uma azedinha do canteiro.

GR: Qual o significado da comida para você?

Irany: Eu entendo que a comida é uma ferramenta de transformação. Sou uma nutricionista de comida, não somente de nutrientes. Digo que eu sou uma nutricionista não convencional. Coordenei o Programa de Alimentação Escolar no Rio Grande do Sul por quatro anos. Naquele momento, tive contato com um novo mundo, porque eram mais de um milhão de alunos. Como se atende a essa imensidão de pessoas, cada uma com a sua cultura, sua identidade, sua história? Não é pensando de forma homogênea. A gente precisa respeitar as diferentes situações.

GR: Como você resolveu essa questão?

Irany: Quando entrei nesse mundo da alimentação tive contato com a agroecologia. E conheci merendeiras e produtores maravilhosas. Então eu encerrei um ciclo que foi de 1999 a 2002 com uma implementação pioneira no País de merenda agroecológica. Nessa época não existia ainda a legislação que priorizava alimentos orgânicos nas escolas, nem produtos de agricultura familiar. Terminei a gestão trazendo a agricultura familiar e a merenda agroecológica para a escola. Percebi que eu conhecia os alimentos, mas desconhecia a produção deles. Depois dessa experiência, resolvi fazer mestrado em fitotecnia (hortas) e conheci o Valdely Kinup, que como botânico, estudava as plantas alimentícias não convencionais da região metropolitana de Porto Alegre. Foi ele me mostrou que urtiga se come, que a medula do jaracatiá se come e outras coisas absolutamente diferentes, e eu ficava cada vez mais encantada com aquilo.

Para Irany Arteche, comida é uma ferramenta de transformação — Foto: Divulgação

GR: Essas plantas são saborosas?

Irany: Eu tinha a habilidade de colocar sabor nos pratos. Não adianta só entender que algo é comestível, tem que ser palatável. E quando o Valdely estava encerrando o doutorado dele, nós fizemos, em 2007, uma oficina para mulheres agricultoras, onde ensinamos receitas de panqueca de urtiga e geleia de physallis (frutinha amarela muito usada na confeitaria para enfeite de bolos). Aquilo não era conhecido, mas era absolutamente fácil de cultivar. Vimos que foi muito impactante.

GR: Você expandiu esses ensinamentos?

Irany: Sim, em 2008 fui trabalhar em Nova Santa Rita, que é um município perto de Porto Alegre, e resolvi que tínhamos que trazer isso à pauta. Idealizei um curso e fui atrás de quem pudesse bancar e encontrei a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Falei da ideia de prospectar, identificar e dar uso culinário às plantas alimentícias não convencionais naquela região, que tinha cinco assentamentos para a reforma agrária. E escrevi um projeto com o embasamento científico da tese de doutorado do Valdely Kinup, que era sobre as plantas alimentícias não convencionais da região metropolitana de Porto Alegre.

GR: Como vocês chegaram ao nome PANC?

Irany: A partir da escrita desse projeto, em maio de 2009, é que começou a ser usado o acrônimo PANC com o referencial bibliográfico do Valdely Kinup, que estudou centenas de referências sobre o que é comestível, mas não está na cadeia comercial e, por não ser convencional, as pessoas não identificam como comestível. Depois disso, em 2014, ele lançou um livro de receitas, com fotografias, descrição botânica, usos culinários, quais partes que eram alimentícias de cada planta. Nessa época já existiam receitas com PANCs de várias pessoas importantes da gastronomia, como o Alex Atala e a Helena Rizzo.

GR: Qual foi seu mérito na divulgação do termo?

Irany: Eu criei um tipo de guarda-chuva ao trabalhar a expressão PANC, pois ela acolheu ervas daninhas, plantas invasoras, plantas ruderais, matos comestíveis, plantas alternativas, todos esses termos que até então eram meio pejorativos. Essa nova denominação de PANC derruba determinados preconceitos e traz uma novidade à medida que se torna uma identificação muito pragmática de algo que não está no mercado, não está no circuito comercial, mas que é comestível.

GR: Como levar esse conceito para mais pessoas?

Irany: Eu digo que a PANC da vez é o pensamento alimentar não convencional. As plantas estão aí, mas, se a gente não tiver um pensamento que as enxergue, elas não serão utilizadas. As pessoas querem conveniência e eu acho que precisam ser instigadas a enxergarem as PANCs. O sistema alimentar atual é prejudicial porque deixa a comida homogênea e monótona. Também agride o ambiente, rouba a saúde e cria uma desconexão com a história das pessoas, com suas culturas, com suas tradições. Queremos que as PANCs se tornem convencionais, que elas estejam nos mercados, nas feiras, que todas as pessoas tenham acesso, porque são plantas muito mais resilientes, resistentes, nutritivas, saborosas, com custo menor, espontâneas, agroecológicas. Elas não são da monocultura. Então, assim, o que a gente quer é que elas se tornem convencionais. É isso, mas é um longo caminho.




Fonte: Globo Rural