
Aos 77 anos, a aposentada Cleonice Vera Cruz é uma das moradoras mais antigas da Vila da Barca, onde vive há quase seis décadas. O bairro, localizado às margens da baía do Guajará, no centro de Belém, é marcado por casas de madeira construídas sobre palafitas, devido às variações da maré. Ocupada por ribeirinhos desde o início do século passado, atualmente, a Vila da Barca é uma das maiores comunidades de palafitas urbanas da América Latina.

O contraste entre a vulnerabilidade da vila e os prédios de luxo na região das Docas, principal ponto turístico da cidade, é evidente. Esta área recebeu investimentos significativos durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que termina nesta semana. Cleonice relata que “quando dá um vento, a casa sacode. Se passar uma pessoa aí do lado, a gente sente porque a casa balança”. Durante períodos de cheia do rio e chuva forte, a preocupação aumenta.
Na última quarta-feira (17), uma forte chuva molhou toda a casa de Cleonice, que comentou: “Eu ainda estava enxugando, é tudo furado aqui”, referindo-se às fendas entre as madeiras que deixam o interior vulnerável à água da chuva. A preocupação da moradora se confirmou na madrugada de sexta-feira (14), quando uma casa na vila desabou. Quatro moradores, incluindo uma criança e uma pessoa com deficiência, escaparam sem ferimentos após ouvirem estalos na estrutura, que alertaram para o colapso. Além da família desabrigada, outros moradores tiveram suas casas com estruturas comprometidas, precisando de acolhimento.
A tragédia ocorre no mesmo dia em que a COP30 encerrava sua primeira semana de debates sobre soluções climáticas, evidenciando que a crise ambiental também se manifesta na crise habitacional e social, que afeta principalmente quem já vive à margem. “A gente precisa defender o meio ambiente, mas está se falando bem pouco ou quase nada sobre o cuidado e a proteção de quem mora debaixo da copa das árvores. Nós somos milhares de brasileiros que moramos na Amazônia, que não tem saneamento básico ou tem de forma precária, e o sistema de abastecimento de água também é precário”, afirma Gerson Siqueira, presidente da Associação de Moradores da Vila da Barca.
Segundo ele, há uma lacuna nas discussões sobre transição energética, que não abordam as condições de moradia da população mais vulnerável. “Como é que essa população vai passar por esse processo? As discussões na Blue Zone da COP30 falam de financiamento, mas e a moradia? Será que a questão ambiental não passa por uma moradia digna?”, questiona.
Dados de um estudo da ONG Habitat para a Humanidade Brasil, divulgado na última semana na COP30, apontam que 66,58% das pessoas que vivem em áreas de risco no país são negras. A pesquisa cruzou informações sobre áreas de risco hidrológico e geológico com dados censitários de 129 cidades brasileiras, revelando que mais de um terço (37,37%) desses domicílios são liderados por mulheres, com renda média de R$ 2.127, aproximadamente 55% da média geral das cidades. Além disso, 20,29% dessas casas não possuem esgoto e 2,41% não têm coleta adequada de lixo.
Entre 2013 e 2022, cerca de 2,1 milhões de casas foram danificadas por desastres climáticos e 107 mil destruídas, segundo o levantamento. Raquel Ludermir, gerente de incidência política da Habitat Brasil, destaca que “a maioria das pessoas que vivem em área de risco é negra, de baixa renda, chegando à metade da renda de quem vive em áreas seguras, além de serem predominantemente mulheres chefes de domicílio e pessoas sem escolaridade”.
Na Vila da Barca, a diarista Maria Isabel Cunha, conhecida como Bebel, exemplifica esse perfil socioeconômico. Mãe solo de dois filhos, um com deficiência, ela está desempregada e depende de uma pensão para sustentar a família. Bebel realiza faxinas por até R$ 50 e sente falta de mais serviços públicos que possam oferecer suporte, como creches ou centros de convivência. “O dinheiro que chega não dá para arrumar a casa para mim e meu filho mais novo. Seria bom ter um emprego fixo. Preciso de tempo para cuidar do meu filho, que é especial”, afirma.

Apesar do isolamento, poucos moradores parecem estar cientes dos debates da COP30, que acontecem a menos de cinco quilômetros de distância, no Parque da Cidade. Bebel comentou que as reformas na zona turística de Belém, como os armazéns históricos e a Avenida das Docas, foram as principais mudanças que notou. Cleonice, por sua vez, que acompanha tudo pela TV, se surpreendeu com a presença indígena na cidade, brincando: “Não sabia que tinha tantos indígenas”.
A Vila da Barca possui aproximadamente 600 moradias de palafitas, abrigando mais de mil famílias, em um bairro que totaliza cerca de 5 mil moradores. Parte da população vive em construções de alvenaria, em áreas já urbanizadas. Recentemente, a empresa Águas do Pará iniciou obras de saneamento, investindo R$ 15 milhões na instalação de sistemas de abastecimento de água e coleta de esgoto. A primeira fase do abastecimento foi concluída, e as famílias agora têm hidrômetros individuais, com uma previsão de tarifa social de R$ 66,42. A rede de esgoto deve estar finalizada até abril do próximo ano.
Racismo ambiental
A comunidade luta por melhorias duradouras, reivindicando moradias dignas e infraestrutura adequada. “A gente está trazendo melhorias para a vila, a mitigação de um problema, mas precisa de uma destinação definitiva. Até quando o Estado vai permitir que essas famílias continuem morando assim? Esperamos que haja um conjunto habitacional com moradia digna e infraestrutura para que possam desenvolver suas vidas aqui”, afirma Gerson Siqueira.
Apesar dos desafios sociais, a Vila das Barcas mantém uma vida cultural vibrante, com festas tradicionais, blocos carnavalescos e a celebração anual do Círio de Nazaré, durante o qual a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré é levada pela comunidade.
A ONG Habitat para a Humanidade Brasil destaca que a crise climática está diretamente relacionada à crise habitacional. Segundo um relatório recente, apenas 8% das metas climáticas voluntárias dos países, as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), abordam questões urbanas, favelas e comunidades vulneráveis, incluindo planos e financiamentos específicos para lidar com a destruição de moradias e infraestrutura causada por eventos extremos. Raquel Ludermir reforça que “defendemos a permanência dessas comunidades, mas com melhores condições de segurança, habitabilidade e resiliência. Algumas políticas de adaptação climática têm justificado a remoção de comunidades inteiras, o que é injusto”.
A diarista Maria Isabel Cunha, conhecida na Vila da Barca como Bebel, materializa bem esse perfil socioeconômico mapeado na pesquisa da Habitat. Mãe solo de dois garotos, sendo um deles com deficiência (PCD), Bebel está atualmente desempregada e depende da pensão recebida pelo filho PCD para sustentar a casa, além das escassas faxinas em residências de família, em que costuma receber até R$ 50 pelo serviço. Bebel diz gostar de morar na vila e ressalta o espírito comunitário no bairro. Sente falta de contar com mais serviços públicos que possam garantir uma rede apoio no cuidado com o filho, como um clube público ou instituição educacional.

“O dinheiro que chega não dá para a gente ajeitar a casa para mim e meu filho mais novo. Seria bom ter um emprego fixo. Eu cheguei a mandar currículo para trabalhar de arrumadeira num hotel, mas não deu certo. Preciso de tempo para cuidar do meu filho, que é especial”, afirma.
Poucos moradores ali pareciam estar totalmente a par dos debates da COP30, que acontecem a menos de cinco quilômetros de distância, no Parque da Cidade. Para Bebel, as reformas de revitalização da zona mais turística de Belém, como os armazéns histórico e a Avenida das Docas, locais próximos da comunidade de palafitas, foi o que mais chamou a atenção. “Ficou bonito lá, né”, disse. Já Cleonice Vera Cruz, que acompanha tudo pela TV, se surpreendeu com a grande presença indígena na cidade. “Não sabia que tinha tantos indígenas”, brincou.
Resposta e adaptação
Na Vila da Barca, são cerca de 600 moradias de palafitas, onde vivem mais de mil famílias. O local fica no bairro do Telégrafo, que soma um total de 5 mil moradores – parte vive em construções de alvenaria, em áreas já aterradas e mais urbanizadas. No fim de julho, a empresa Águas do Pará, responsável pelo saneamento no estado, iniciou obras de instalação do sistema de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto, no valor de R$ 15 milhões. A primeira fase de abastecimento de água já foi concluída e agora mesmo as famílias que vivem nas casas de madeira têm seu hidrômetro individual. O valor da conta, que ainda não está sendo cobrada, de acordo com a associação de moradores, será de R$ 66,42, uma taxa social. A rede de esgoto deverá ser finalizada até abril do próximo ano.

A luta da comunidade de palafitas por dignidade passa pela garantia de permanência. “A gente está trazendo melhorias para a vila, a mitigação de um problema, mas a gente precisa dar uma destinação. Elas vão continuar ali, morando sobre palafitas, até quando? Até quando o Estado brasileiro vai permitir que essas famílias continuem morando assim? A gente espera que tenha um conjunto habitacional com moradia digna, com infraestrutura necessária, para que elas consigam desenvolver a vida delas aqui”, afirma Gerson Siqueira.
Apesar do drama social, a Vila das Barcas tem vida cultural vibrante, com tradicionais festas juninas, blocos carnavalescos e que recebe, todos os anos, a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré, durante o Círio de Nazaré, cuja devoção popular é um dos emblemas mais conhecidos do Pará.
A ONG Habitat para Humanidade Brasil chama a atenção para um dado ainda pouco debatido pelos países, que é a relação crise climática versus crise habitacional. Segundo outro relatório da entidade, publicado pela sua rede com atuação global, somente 8% das metas climáticas apresentadas voluntariamente por cada país, as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês), tratam da questão urbana, favelas e comunidades, incluindo planos e financiamento adequados para lidar com a emergência climática que destrói e danifica moradias e infraestrutura, acentuando as crises habitacional e urbana.
“A gente defende muito a possibilidade de permanência dessas comunidades, mas com melhores condições de segurança, de habitabilidade, adaptabilidade também. Ou seja, fortalecer a resiliência dessas comunidades, que muitas vezes são confundidas com falsas soluções, porque algumas dessas políticas de adaptação climática têm justificado a remoção de comunidades inteiras, o que não é justo”, argumenta Raquel Ludermir.
Fonte: Agência Brasil








