Nas propriedades rurais, iniciativas de conservação e reservação da água têm potencial e geram benefícios significativos ao meio ambiente
No auge da seca rigorosa que afetou boa parte do Brasil neste ano, Vicente Ferreira e Florinei Cardoso contemplavam, orgulhosos, a beleza do Córrego Bucanhão, que passa pela propriedade de 18 hectares do casal, localizada no Núcleo Rural Capão da Onça, em Brazlândia (DF). Em setembro, quando a Globo Rural visitou o local, não chovia na área havia mais de 150 dias. Ainda assim, disseram os produtores, a vazão do córrego estava maior e a qualidade da água melhor do que a de oito anos atrás, quando eles se instalaram no sítio Xangrilá.
“Quando chegamos aqui, o volume de água era menor, e o córrego, na época da chuva, ficava sujo e oscilava muito”, recordou Vicente. Ele e “sua Flor” produzem maracujá pérola, amora, pitaia, banana-prata, avocado, carambola e ponkan, tudo com certificado orgânico, selo de boas práticas e, agora, com água de qualidade e em abundância o tempo todo.
Há dois anos, o casal deu início a um trabalho para conservar o Bucanhão, que abastece a bacia do Rio Descoberto, a principal fonte de água para consumo da população da capital federal – ao todo, a bacia atende 1,8 milhão de pessoas. A região enfrentou uma crise hídrica entre 2016 e 2018 e passa por racionamento voluntário no trabalho de irrigação no campo.
O principal problema era a velocidade com que a água escorria pela propriedade na época das chuvas e “lavava” a terra do Xangrilá. Por onde passava, a enxurrada levava embora sedimentos até chegar ao córrego, que, com isso, ficava assoreado. A força da água também retirava nutrientes da camada mais superficial do terreno e empobrecia o solo.
Orientados pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) do Distrito Federal e pela Embrapa, eles investiram em cuidados com o solo e no reflorestamento das áreas de preservação permanente (APP) e de reserva legal para evitar o assoreamento do córrego. O casal já plantou 1.300 mudas de plantas do Cerrado, entre elas frutas típicas, como jatobá e tamarindo, e construiu barragens para retenção e infiltração de água.
Em novembro, crianças de escolas da região farão o plantio de mais 400 mudas. Vicente e Florinei deixaram de captar a água do córrego e passaram a irrigar as frutas em sistema de gotejamento e microaspersão. Para essa tarefa, eles usam um poço artesiano, que tem ficado mais cheio e com volume de água mais estável, mesmo com a seca, o que é um resultado palpável das ações conservacionistas.
A seca de 2024 é a pior que o Brasil registra em mais de 70 anos. Em um cenário de tamanha gravidada de (a situação não ficava tão ruim desde 1950, de acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, o Cemaden, órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), ganham corpo as discussões sobre a importância da conservação e do uso eficiente dos recursos hídricos. E em nenhum outro setor isso fica tão evidente quanto na agricultura, que consome mais da metade do volume de água captado no país: segundo a edição mais recente do relatório Conjuntura dos Recursos Hídricos, a irrigação consumiu 50,5% dos 64,2 trilhões de litros de água que o Brasil captou em 2022.
Iniciativas como as de Vicente Ferreira e Florinei Cardoso mostram que a atividade agrícola pode ser, ao mesmo tempo, consumidora e “produtora” de água. No sítio Xangrilá, ainda é possível encontrar valetas abertas pela erosão de anos anteriores. Uma área próxima dali ficou improdutiva, e os adubos habituais se tornaram insuficientes. Com isso, o casal adaptou algumas práticas de produção. Foi necessário aplicar fósforo para fazer vingar o plantio do maracujá, por exemplo. Como resultado, mesmo com a seca histórica, a fruta encontrou nutrientes e água no solo para crescer e adoçar o paladar de quem a saboreia.
Áreas antes sem produção já receberam plantio de bananeiras, plantas de cobertura e de baru, uma amêndoa típica do Cerrado. “Manter a cobertura do solo é importante. Ela aumenta a infiltração, diminui o escoamento superficial e a velocidade da água e faz com que caiam menos sedimentos no córrego”, diz a pesquisadora Fabiana Aquino, da Embrapa Cerrados, que acompanha o processo de restauração ecológica no sítio do casal.
Com a experiência e os resultados dos últimos dois anos, Vicente e Flor foram os primeiros produtores a assinar contrato para participar do Programa Produtor de Água da Bacia do Descoberto, que tem adesão voluntária. A iniciativa envolve 24 instituições, como Emater-DF e Embrapa, que apoiam a adoção de práticas para conservação dos recursos hídricos.
Agora, além da ajuda de órgãos e empresas para fazer as melhorias na propriedade, eles podem receber até R$ 170 por hectare ao ano como pagamento por serviços ambientais de conservação dos recursos hídricos. “O reconhecimento financeiro não é tão significativo, o mais marcante é o apoio técnico”, afirma Vicente. “Quando o ter está distante do ser, o homem corta, arranca e destrói. Só o equilíbrio vai nos levar a um mundo agradável.”
Desde 2001, surgiram 74 projetos em todo o país, dos quais 12 já se encerraram. As ações, que receberam quase R$ 110 milhões em investimentos, ocorrem em 2.300 propriedades e cerca de 710.000 hectares em bacias hidrográficas de 12 Estados e do Distrito Federal. Ao menos 1.000 produtores recebem ou já receberam bonificação financeira – os desembolsos passam de R$ 17 milhões.
A governança do uso da água é o principal ganho de programas como o Produtor de Água, diz Jorge Werneck, doutor em tecnologia ambiental e recursos hídricos e uma das principais autoridades em hidrologia do país. O projeto da bacia do Pipiripau, que começou em 2011 no Distrito Federal, ficou em segundo lugar na premiação Water ChangeMaker Awards, promovida pela Parceria Global pela Água (GWP, na sigla em inglês), que reconhece iniciativas de todo o mundo.
Werneck diz que a gestão territorial é a chave para permitir a recarga de água no subsolo, a produção de alimentos e a preservação e conservação da qualidade desses recursos naturais. Para alcançar esse mosaico ideal, são necessários uso racional e eficiente da água, investimentos em infraestrutura e financiamento.
A economia de água pode chegar a 30% no campo com práticas simples de monitoramento e precisão na irrigação, outra peça-chave nesse tema. “É preciso migrar da laminação de água, método muito usado na cultura do arroz no Sul do país, para sistemas de gotejamento, microaspersão e pivô central”, avalia Nazareno Araújo, diretor interino da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Ele afirma que os sistemas de irrigação localizada são os mais eficientes, mas reconhece que, como o custo é alto, o pivô central é o mais usado nas grandes lavouras.
No fim de janeiro deste ano, a ANA publicou a primeira edição do estudo Impacto da Mudança Climática nos Recursos Hídricos do Brasil, que apresentou cenários de curto, médio e longo prazo. Para o curto prazo, até 2040, a projeção é que a disponibilidade hídrica pode cair mais de 40% em áreas hidrográficas das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e em parte do Sudeste, o que pode afetar a geração hidrelétrica, a agricultura e o abastecimento de água nas cidades. Já no Sul, a tendência é a de que a oferta hídrica cresça até 5% nesse mesmo prazo, em decorrência do aumento da frequência de enxurradas e enchentes.
“As mudanças climáticas têmocorrido em velocidade muito grande. Hoje, estamos com seca, mas no primeiro semestre tivemos a tragédia da cheia no Rio Grande do Sul. Temos convivido com as duas situações, e a maneira mais eficiente para fazer a adaptação são as soluções baseadas na natureza”, afirma Araújo. Ele frisa que a cultura de abundância de água, que dominou o país no passado, não vale mais. “Vivemos uma das maiores estiagens dos últimos 100 anos. Os níveis baixos dos reservatórios e dos rios, especialmente no Norte do país, dão a dimensão de quanto esse momento é grave.”
“Plantador” de água no Pará
Foi em uma festa de casamento em Brasília que o pecuarista Pedro Marcos de Carvalho descobriu a solução para “plantar” água em suas fazendas no município de Floresta do Araguaia, no sudeste do Pará. A ideia era poder criar gado no período da seca, que começa no fim de maio e vai até setembro.
Em um guardanapo, Luciano Cordoval, pesquisador da Embrapa e desenvolvedor da técnica das barraginhas no país, fez um desenho e explicou para Pedro como abrir as bacias em locais de passagem das enxurradas na parte alta das pastagens, sem necessidade de impermeabilização. O sistema de microbarragens torna torna possível o acúmulo de água das chuvas para os meses de seca, eleva a infiltração do recurso no solo e combate a erosão.
“Minha tradição de pecuarista vem da época do meu bisavô. Comecei a comprar fazendas no Pará em 2004, atraído pelo preço baixo das terras, mas logo no primeiro ano descobri que não tinha água na seca e que não dava para criar gado sem água”, lembra Carvalho, de 74 anos. “Tive que contratar muitos caminhões-pipa para os animais não morrerem de sede.”
Os vizinhos da fazenda o aconselharam a abrir poços artesianos, mas o veterinário Pedro, mineiro de Bambuí, resolveu seguir à risca os conselhos do amigo Luciano e abriu a primeira barraginha em 2006. A decisão ocorreu um ano depois de o produtor perder 45 das 300 cabeças de nelore que criava na fazenda de solo argiloso, que fica esturricado na seca, quando o calor passa de 40ºC.
Antes, ele observou por onde descia a enxurrada na época das chuvas. Para abrir os buracos, usou um trator e alugou uma retroescavadeira de esteira, mas não sabia se a água das chuvas ficaria acumulada em volume suficiente. Por isso, voltou a contratar caminhões-pipa para encher as bacias.
“Descobri que, depois de abertas, as barraginhas vão se firmando. Algumas secam, mas com outras isso nunca acontece. E quanto mais buracos você fizer, melhor fica”, diz o pecuarista. “A água se infiltra, a terra vai ficando úmida, e os pastos ficam verdes por mais tempo, segurando o peso do gado, outra grande vantagem.”
Em cinco anos, Carvalho abriu 105 buracos. No começo, ele relata com bom humor, os vizinhos o chamaram de louco. Depois, comprou quase 30 propriedades para formar sua fazenda, que tem 7.000 hectares e está em processo de georreferenciamento.
Quando comprou as primeiras áreas, o produtor teve que assegurar também a chegada da energia elétrica à região. Hoje, a propriedade, que ganhou o nome de Independente, tem 80 áreas de pasto e 168 barraginhas. “Agora, com a minha PC (ele investiu R$ 700.000 na compra de uma retroescavadeira), eu faço barraginha na hora em que eu quiser”, diz o pecuarista. Segundo ele, muitos vizinhos passaram a também abrir suas bacias.
Além de suas terras terem tido uma valorização de mais de 1.000%, o que faz com que, hoje, produtores de soja as cobicem, o resultado ambiental foi compensador, conta Pedro. “Quando comprei a fazenda, aqui só tinha abelha. Hoje, tem quero-quero, joão-de-barro, pica-pau, garça-pantaneira, canarinho, pato selvagem, tamanduá-bandeira, quati, porco-espinho, anta, capivara, paca, tatu, veados e macacos-prego. Tem muitos peixes nas barraginhas, e surgiram até jacarés, que as cheias do Rio Grotão trouxeram na época das chuvas. É uma beleza.”
A Globo Rural esteve na fazenda no fim de setembro. Na visita, foi possível ver o gado, outros animais e pássaros aproveitando a água que se acumulou nas bacias. A maioria delas estava abastecida.
“Nem sempre a gente acerta, mas estou sempre procurando melhorar porque tive um patrão professor que me dizia que tudo você pode melhorar”, diz o pecuarista, acrescentando que, no período das chuvas, especialmente em dezembro e janeiro, todas ficam cheias e a água escorre pela fazenda.
Pedro continua abrindo três ou quatro barraginhas por ano (“quando sente a necessidade”) e acha que a fazenda comporta ainda mais umas 100. Mas, no momento, o plano principal é aumentar a extensão e a profundidade de algumas delas e implantar bombas com energia solar para oferecer, em tanques, uma água mais limpa para o gado.
“A água hoje fica suja na seca porque o gado pisoteia as margens, não tem muita qualidade, mas água é vida. Optei por abrir várias e não apenas umas poucas grandes represas ouvindo um peão que trabalhava comigo. Ele me disse que, com muita oferta, o gado não fica ganancioso por água porque sabe que tem água por todo o lado.”
A ideia das bombas com placa solar veio da filha mais nova, a advogada Kátia, de 36 anos, que administra sozinha há 4 anos outra fazenda da família em Floresta do Araguaia, responsável pela recria e engorda dos animais. Na 3 Meninas, que além das barraginhas, tem sistema de gestão por aplicativo, adubação de pastos e outras inovações que ainda não chegaram na propriedade do pai, as placas já foram instaladas para o gado ter acesso a uma água mais limpa.
Em 2024, segundo Pedro, não choveu em setembro e as barraginhas estão enfrentando e vencendo seu maior teste porque é o ano mais seco desde que ele chegou à região. Tanto que o governo do Pará decretou situação de emergência por causa das queimadas e da estiagem prolongada que tem reduzido os níveis de água em reservatórios, rios e aquíferos.
Joaquim Soares Costa, gerente que lidera os quatro vaqueiros no manejo diário do gado entre os pastos, diz que as barraginhas realmente mudaram a cara da fazenda. “Eu sou goiano, mas vim pra Floresta do Araguaia com 9 anos e essa região sempre foi muito seca.”
Além de Kátia, Pedro tem mais duas filhas: a veterinária Cristiana América, 42, e a artista plástica, estilista e pedagoga Daniela, 47. Com as três criou uma holding neste ano pensando na sucessão e tendo o compromisso das filhas de que a pecuária (e não a lavoura) continuará a ser o negócio da família.
“Fazenda de pecuária tem que ser 2G: genética e gestão! E nós estamos no caminho certo”, diz Pedro. Ele conta que trabalhou muitos anos com inseminação de gado, mas em sua propriedade a reprodução é 100% por monta com uso de touros nelore P.O. A meta é chegar a ter 3.000 vacas na fazenda, com criação de 700 bezerros por ano e engorda de mil cabeças.
Segundo Kátia, que cuida também da parte financeira das outras fazendas, o rebanho da família já possui o brinco Sisbov (Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos), que permite identificar e rastrear os bovinos e garante bônus no frigorífico de R$ 25 por arroba devido à exportação de carne e couro.
O pecuarista tem outra fazenda de gado em Araguaína, no Tocantins, onde também abriu barraginhas.
Conservação em Minas Gerais
O município de Extrema, no sul de Minas Gerais, implantou em 2005 sua própria iniciativa de preservação dos recursos hídricos. O projeto Conservador das Águas nasceu com o objetivo de promover a adequação ambiental em propriedades rurais por meio de pagamento por serviços ambientais. A iniciativa já assegurou a conservação e recuperação de mais de 1.500 hectares e incluiu o plantio de mais de 3 milhões de árvores, além da assinatura de cerca de 300 contratos com produtores locais. Ao todo, os agricultores já receberam mais de R$ 10 milhões.
O agricultor Vanildo de Oliveira Bastos é um dos parceiros do projeto. Ele administra a propriedade de 50 hectares que a família mantém no bairro de Salto, na zona rural do município. Seu pai, José de Oliveira Bastos, foi um dos primeiros proprietários a aderir à iniciativa, em 2009.
Na época, José usava a terra para abrigar os rebanhos de gado que trazia de fora para comercializar na região, mas avaliou que a parceria com a prefeitura era vantajosa. Afinal, em troca de um pagamento, ele tinha apenas de ceder as áreas onde houvesse nascentes, permitindo que a gestão municipal plantasse vegetação nativa no entorno e cercasse as áreas reflorestadas. Hoje, as dezenas de microáreas de proteção espalhadas pela propriedade somam 4 hectares de mata nativa. É essa recobertura vegetal que fez ressurgir o potencial hídrico dos terrenos.
No termo de compromisso que assina com os parceiros, a gestão municipal compromete-se a implantar e manter as florestas nativas no entorno das nascentes. “Nós plantamos as árvores originárias da Serra da Mantiqueira e cercamos a área para protegê-la da invasão do gado”, conta Benedito Arlindo Cortez, gerente do projeto Conservador das Águas, que está vinculado à Secretaria de Meio Ambiente de Extrema. Nas áreas de reflorestamento, a prefeitura planta 2.500 mudas por hectare
“Os maiores beneficiários do programa são os produtores. Na nossa propriedade, por exemplo, o volume de água aumentou 60%”, conta Vanildo. Hoje, além de manter um rebanho de 80 cabeças de gado em 40 hectares, ele cultiva banana em outros 2 hectares, nos quais colhe, por ano, 60 toneladas da fruta, que a prefeitura compra por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). “Consigo irrigar toda a plantação de banana com a água da propriedade”, relata. Segundo cálculos do produtor, são 750.000 litros por mês. Vanildo recebe R$ 1.500 pela prestação de serviços ambientais. Ele usa o dinheiro nos cuidados com o pai, que tem 87 anos.
Para calcular a remuneração dos produtores, a prefeitura multiplica a área total da propriedade por R$ 390 e divide o resultado por 12 meses. Para fazer parte do programa Conservador das Águas, o produtor tem que destinar pelo menos 20% de sua área a reservas ambientais.
Quando construiu a política pública, o objetivo da prefeitura era adequar o território por meio da restauração da paisagem nativa. O projeto respeitou o zoneamento ambiental do plano diretor da cidade de Extrema, que indicava os topos de morros (áreas acima de 1.200 metros de altitude), as áreas íngremes e as de proteção permanente hídrica como zonas de conservação ambiental. “Essas áreas eram todas privadas. Introduzimos o conceito de pagamento de serviços ambientais para conseguirmos adesão e valorizarmos o papel desses produtores”, conta Paulo Henrique Pereira, biólogo e idealizador do projeto.
Olga de Oliveira Lima, produtora de 65 anos, também faz parte do projeto. Há 12 anos, seu marido, Hélio Lima, falecido em 2016, tornou-se parceiro do Conservador das Águas. Ela conta que, mesmo antes de saber da existência do programa, o marido já tinha por hábito a preservação de algumas áreas dentro da propriedade da família, que tem 30 hectares. “Ele costumava deixar o mato crescer onde tinha uns fios de água. Na época, eu achava que era por preguiça de capinar, já que a gente sempre fez tudo sozinho por aqui, mas, depois que tomei conhecimento do projeto, entendi que ele já tinha um espírito conservador”, lembra a produtora, que cuida da propriedade com o auxílio dos genros.
Olga recebe R$ 1.800 por mês como pagamento pela preservação de nascentes em 4 hectares de mata. Ela utiliza os recursos nas despesas que tem na propriedade. “Gosto de colocar um fubá ou um farelo no meio do sal que ofereço para o gado, principalmente nessa época de seca”, relata.
O projeto Conservador das Águas de Extrema, que no início contava apenas com um Fusca, um burrinho e dois funcionários, cresceu amealhando apoiadores privados e ONGs nacionais e internacionais. O programa recebeu diversos reconhecimentos, como o Prêmio Internacional de Dubai 2012 de Melhores Práticas para Melhoria das Condições de Vida, promovido pelo Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (ONU/Habitat).
No RS, açudes preservam produção de uva
Em São Luís da Terceira Légua, comunidade no interior de Caxias do Sul (RS), o jovem produtor e técnico agropecuário Gustavo Aurélio Tisott Dalle Molle, de 25 anos, é um exemplo de sucessão rural bem-sucedida. Aos 17 anos, ele já participava das decisões sobre a propriedade. Hoje, cursando a faculdade de viticultura e enologia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), trabalha para colocar em prática os ensinamentos que recebeu, como aplicação de técnicas de agricultura regenerativa.
Com 44 hectares, os Dalle Molle dedicam 13 hectares à produção de uvas para sucos e vinhos de mesa e 1,5 hectare para citros. Atualmente, um dos maiores desafios de Gustavo é preservar a produção da família sob um quadro de dificuldades com as secas constantes no Rio Grande do Sul. Em 2019, devido à falta de chuvas, a propriedade perdeu cerca de 70% da safra de uva. “Mais do que a colheita, o maior problema foi a morte das plantas. Naquele ano, perdemos 40% das videiras, a maioria com produção antiga”, lamenta Gustavo.
Para evitar mais prejuízos, ele adotou um sistema de irrigação dos parreirais com um açude com geomembrana, uma espécie de manta plástica que reveste a superfície do tanque. O sistema armazena a água da chuva, especialmente durante o inverno, para que se possa utilizá-la durante os períodos mais secos, como o verão. O escoamento da água ocorre por meio de valetas. Elas ficam próximas ao reservatório, que tem capacidade de cerca de 500.000 litros.
A família investiu R$ 60.000 para abrir o açude e colocar a geomembrana. “Irrigação é cara, mas se paga. Se não tivéssemos essa reserva, teríamos sofrido muitas outras perdas de videiras e de produção depois de 2019”, comenta o produtor.
Além do tanque, a propriedade conta ainda com outros dois açudes comuns, que agregam 100.000 litros de reserva de água. Para Gustavo, a irrigação é uma necessidade para a produção eficiente na área, já que o microclima da propriedade não assegura a oferta de água para as necessidades do local. “A encosta onde estamos é bem protegida contra granizo e geada, mas recebe pouca chuva”, explica.
Atualmente, a propriedade dos Dalla Molle irriga 3,5 hectares de parreiras, mas a área deverá crescer, sem prejuízo para a preservação de água. “Mesmo com bastante uso de água, a gente consegue conservar as poucas vertentes que temos”, explica.
Oásis na Caatinga
Em meio à vegetação seca e tortuosa da Caatinga, o paranaense Vilmar Lermen mantém um oásis de quase 3 hectares com mais de 300 espécies vegetais diferentes em pleno sertão do Araripe, em Exu (PE). O sistema agroflorestal, que existe há 18 anos, é considerado sua principal ferramenta para garantir produção constante ao longo de todo o ano, mesmo durante os longos períodos de estiagem característicos do bioma.
“Nós armazenamos a água em dois formatos: fisicamente, em cisternas, mas também no organismo do sistema, com a vegetação da agrofloresta e a serrapilheira na cobertura de solo”, conta o produtor. Em integração com a vegetação nativa, ele planta feijão, milho, mandioca e banana, além de frutas exóticas e locais.
Jucimar Brito, coordenador-geral interino do Centro de Assessoria e Apoio a Trabalhadores e Instituições Não Governamentais Alternativas, o Caatinga, explica que, nessas condições, o solo funciona como uma caixa d’água. “Com essa composição de plantas, há uma captação de dias de chuva”, afirma ele.
No período seco, a orientação é que os produtores façam reúso de águas cinzas, oriundas de pias e chuveiros, para o trabalho de “molhação de salvamento” das espécies mais sensíveis a estiagem. A partir da água do vaso sanitário, Vilmar montou um tanque de evapotranspiração, um sistema de tratamento e reúso de esgoto que torna possível o cultivo de banana, taioba, mamão e outras espécies que têm elevadas taxas de evapotranspiração e de demanda hídrica.
“Mas, quando o sistema está no ápice, muitas vezes precisa utilizar essa água. Mas isso requer tempo. Um sistema agroflorestal leva, no mínimo, dez anos para chegar à maturidade. E para o solo se recuperar totalmente, mais de 30 anos”, pontua Brito.
A Caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro, é também a região semiárida mais habitada do planeta – o que se reflete também em seu nível de ação humana sobre o meio ambiente, a chamada antropização. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 42,6% dos 844.400 quilômetros quadrados do bioma já foram convertidos para outra destinação.
O resultado desse processo histórico de ocupação baseada em desmatamento e uso do fogo tem sido a paulatina perda de água em um ecossistema extremamente suscetível à desertificação. De acordo com levantamento do MapBiomas feito com base em imagens de satélite, entre 1985 e 2020, a Caatinga perdeu 15 milhões de hectares de vegetação nativa, o equivalente a 26,36% da área original. Essa foi uma das razões para a superfície de água do bioma ter diminuído 40%.
“Acreditamos muito que a agrofloresta é uma das formas de se cultivar a terra com sustentabilidade e proteção do bioma contra esse processo de desertificação que tem ocorrido no semiárido”, diz o assessor de coordenação da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Giovanne Xenofonte.
Segundo ele, o sistema tem ganhado espaço entre agricultores familiares como uma importante estratégia de convivência com a seca, mas ainda precisa de fôlego para ganhar escala. “A vida toda nós fomos ensinados a desmatar, queimar e a passar veneno. Por isso, precisamos de mais pessoas como o Vilmar no semiárido experimentando a agrofloresta e também que as políticas públicas apoiem esse tipo de iniciativa, para que de fato elas se tornem uma realidade”, observa.
Os resultados da agrofloresta de Vilmar têm chamado a atenção de produtores que buscam replicar as técnicas. Hoje com seu sistema em pleno funcionamento, ele se recorda dos seis anos de estiagem consecutivos da década passada, entre 2012 e 2017. “Naquela época, nós aprendemos a ter resiliência e adaptação”, afirma. “Era mudar a forma de produzir ou ir embora.”